Por Natalia Viana, na agência
Pública:
Atrás
das grossas e enferrujadas grades da penitenciária nacional de Tacumbú, na
capital paraguaia Assunção, em meio a mais de três mil detentos – a lotação é
de 1500 – o camponês Rubén Villalba carrega um peso infinito. Baixinho,
barrigudo, de olhos pequenos e pele morena típica do interior paraguaio pros
lados do Mato Grosso do Sul, ele é acusado de ser o principal causador da
matança de Curuguaty, motivo apresentado para a destituição do presidente
eleito Fernando Lugo em junho de 2012 pelo Congresso.
Contra
Villalba pesa não apenas o papel que lhe é atribuído na História, do qual tenta
desesperadamente fugir, mas a realidade de que está sozinho. Nunca houve na
imprensa paraguaia uma só voz que o defendesse; os demais dirigentes da
ocupação de sem-terra que, como ele, decidiram resistir à reintegração de posse
no dia 15 de junho estão mortos; sua esposa está em prisão domiciliar a 400
quilômetros com o filhos de 7 meses. Todas as evidências consideradas pela
investigação da Fiscalía, espécie de ministério público do Paraguai, sobre o
massacre apontam para ele. O presidente do seu país, Frederico Franco, chamou-o
de assassino e afirmou que ele protagonizou uma emboscada a policiais que
resultou na morte de seis deles. No dia, morreram também 11 camponeses.
Sua
captura, em outubro, foi celebrada não apenas pelo presidente. “Claro que me
golpearam qundo fui preso”, conta à Pública, no seu espanhol misturado com
guarani, enquanto esquiva-se do olhar dos guardas num canto do presídio – ele
está terminantemente proibido de falar com a imprensa. “Havia muita tortura
psicológica, ‘você é o que matou fulano, você é do (grupo guerrilheiro) EPP,
diziam. Me subiu em cima do meu lombo, nas minhas costas e disse ‘urra’, me
parece que eu era um troféu me parece…”
É
neste momento que Ruben começa a chorar, ao relatar o pouco que lembra da
desocupação do terreno de 2 mil hectares. Não eram incomuns as desocupações do
tipo nem que os sem-terra decidissem resistir à tentativa de reintegração de
posse, como fizeram Ruben e os outros dirigentes. O fato de que o grupo possuía
escopetas de caça (entre 17 e 20) também era algo comum em desocupações,
segundo muitas testemunhas ouvidas pela Pública, entre policiais, camponeses,
jornalistas, militares. Mas tudo o que se seguiu foi absolutamente incomum.
“Eu
esperava que ia haver uma conversa, ou iam apresentar um titulo de propriedade,
ou para falar com a Fiscalía e outras autoridades mais”, lembra Rubén. “O
companhero Pindu, esse companheiro Avelino Espínola, esse que conversava, ele
pedia documentos da propriedade. Quando começara os disparos eu recebi o
primeiro disparo. Me fui ao chão e não entendi mais nada, estava inconsciente”.
No meio do tiroteio, Rubén foi acudido por outro integrante da ocupação –
“Nosotros los companheiros já se morreram todos”, lembra de ter ouvido – e
ficou escondido em uma região montanhosa até ser capturado, três meses depois.
Próximo
dali, na ala hospitalar do centro de detenção, de nome “Esperança”, está Néstor
Castor, outro dos cerca de 70 sem-terra que ocupavam as terras conhecidas como
Marina Cué. Embora contra ele não pese a acusação de ter provocado o massacre,
Castor carrega uma repugnante ferida; seu maxilar esquerdo foi destruído por
uma bala, e desde aquela manhã seu rosto está parcialmente desfigurado. Na
época da entrevista, a parte inferior era amarrada por uma espécie de aparelho
dentrário com elásticos. Néstor tem dificuldade de falar e de comer – ainda se
alimenta a base de líquidos. Sua operação só foi realizada no dia 23 de
novembro, cinco meses depois do ferimento. Ele agora está em recuperação.
Cástor
foi preso no dia seguinte ao confronto, quando procurou um hospital em outro
município, depois de fugir do fogo cruzado. Em poucos minutos, chegaram os policiais.
“Me sentia mal, e uma vez os policiais me amarraram na cama, eu não podia sair,
não podia nem ir ao banheiro”. A enorme dificuldade de falar vence, e neste
momento, Castor, também, chora.
Mas
a dor não é só física. Cástor carrega a culpa de ter inadvertidamente dedurado
todos os seus companheiros. É que dias antes do conflito ele escreveu de
próprio punho uma lista com o nome daqueles que ocupavam o terreno, “para pedir
víveres à Secretaria de Emergência Social” do governo federal. A lista, encontrada
pela polícia, é uma das principais peças da investigação conduzida pela
Fiscalía. Todos os que constam nela – estivessem ou não na hora do conflito –
tiveram prisão preventiva decretada e são acusados de homicídio doloso
agravado, homicídio doloso em grau de tentativa, lesão grave, associação
criminal, coação grave e invasão de imóvel alheio.
Indiciar
indiscriminadamente todos os nomes registrados numa lista rabiscada a caneta
não é a única fragilidade da investigação sobre o evento mais importante da história
recente do Paraguai. Na verdade, a investigação está sob crescente crítica da
opinião pública.
Mesmo
depois do informe da investigação ser concluído em outubro, não se sabia o
resultado dos exames de autópsia, e nem os de balística. Das cinco escopetas
apreendidas, supostas armas do crime, apenas uma se mostrou capaz de atirar;
dezenas de invólucros de balas automáticas simplesmente desapareceram. Há
indícios de adulteração da cena do crime e dos cadáveres; uma arma que apareceu
do nada; depoimentos anônimos; e policiais que mudaram suas versões.
A
investigação, em si, é conduzida por um jovem integrante da Fiscalía, de nome
Jalil Rachid, 33 anos, filho de Blader Rachid, ex-presidente do Partido
Colorado, assim como o empresário Blas N Riquelme, que usava o terreno e desde
2004 reivindicava na justiça a sua posse, pedindo a retirada dos sem-terra.
Riquelme,
empresário para uns, grileiro para outros – a Comissão da Verdade sobre a
ditadura de Stroessner apontou irregularidades em terrenos que adquiriu no
período – faleceu dois meses depois do massacre, de uma complicação
cerebrovascular. Foi enterrado com honra e glória, o “Don Blas”, homenageado no
mesmo Congresso que destituiu Fernando Lugo e na sede do Partido Colorado – o
mesmo que votou em peso pelo impeachment.
Viagem a Curuguaty
A
Pública viajou até a região de Curuguaty para tentar entender o que se passou
naquele 15 de junho. Ouviu diversas testemunhas – de um chefe policial a
camponeses foragidos – e encontrou, em pouco mais de dois meses de investigação,
um dos invólucros – que a Fiscalía afirma não existirem – de uma bala 5,56
usada em fuzis M16, que estava no local do conflito.
Para
chegar até a humilde casa de uma família que tem três filhos entre os acusados
da matança, é preciso comer terra. São quarenta minutos de estrada asfaltada e
uma de chão batido em um pequeno ônibus que faz a rota local, e depois mais
quarenta minutos de moto – o único transporte acessível aos moradores da
pequena comunidade que conquistou o sonho da terra ao ocupar, no final da
ditadura de Stroessner, terrenos que o Estado ditatorial havia doado a
fazendeiros – as “terras mal havidas”.
A
dona do casebre de madeira, um enfermeira, levava comida até o acampamento
conhecido como Marina Cué, onde dois dos seus filhos estavam acampando. Quando
soube que haveria uma desocupação, apoiou o filho, Pedro (o nome é fictício)
que decidiu ficar. A filha, uma moça bonita de 26 anos com nariz grosso e
dentes separados, ficou só 15 dias na propriedade, e saiu. Ficou sabendo do massacre
pelo rádio. Mesmo assim, por ter tido seu nome na lista encontrada pela
polícia, está acusada de assassinato.
Pedro,
que estava um pouco afastado do local onde começou o tiroteio, lembra de ter
escutado o primeiro disparo. “Ouvimos um barulho, demos uma volta e olhamos
para o outro lado. Aí saímos correnedo pelo pasto, nos escondemos na baixada ao
lado de um riozinho”. Junto com outros sem-terra, ele então correu para um
monte onde ficou até as 5 horas da manhã do dia seguinte, quando retornou para
casa e se tornou foragido da justiça.
A
família não sabe, mas nos dias anteriores à desocupação travou-se uma pequena
batalha dentro da Polícia Nacional, que acabaria selando seu destino. Segundo
um chefe policial que participou da operação – cujo nome não será identificado
a seu pedido – a polícia sabia que entre os camponeses tinham escopetas. “Eu
disse isso inclusive ao comandante (da Policia – Paulino Rojas), que se levasse
mais tempo [para entrar ali] porque era perigoso, porque se morre um policial,
a cabeça do comandante também cairia. E se morre um camponês, a mesma coisa”,
explica o policial, que participou das discussões de cúpula. “Eu lhe disse que
enviasse mais gente de inteligência ao lugar para obter mais dados, para que
houvesse mais informação [antes de agir]”. Segundo ele, outros chefes policiais
também queriam protelar a desocupação, que afinal aconteceu sob pressão da
Fiscalía.
“Eu
disse ao comandante, quem está por trás de isso? Por que querem tanto fazer
isso se temos tempo para cumprir a ordem de desocupação? Podíamos ter levado um
ano inclusive… Podíamos argumentar que a polícia não estava em condições de
operar, podíamos dizer muitas coisas”. O seu relato é corroborado pelo
depoimento de um policial do Grupo Especial Operativo, que consta na
investigação oficial, à qual a Pública teve acesso.
Segundo
ele, Erven Lovera, comandante da GEO, também queria protelar a desocupação. “O
jefeLovera não queria fazer esse procedimento, ele tinha esse fim-de-semana
livre e queria passar o dia dos pais com seus filhos em Assunção, procurou
todos os lados para suspender, chamava de cá para lá, mas de todos os lados
havia muita pressão de que se tinha que fazer esse procedimento de qualquer
maneira”. Lovera foi o primeiro policial a ser morto. Era irmão do chefe de
segurança pessoal do então presidente Fernando Lugo.
Do
ponto de vista do governo, porém, a atenção deveria ter sido redobrada – e não
foi. Isso porque havia informações sobre a possibilidade de um armar-se um
conflito, um teatro, na região que chegaram a altas autoridades do governo
Lugo. Miguel Lovera, então diretor da Senave (Serviço Nacional de Qualidade e
Sanidade Vegetal e Sementes), conta que recebeu informações já em abril. “Eu já
havia ouvido rumores semelhantes antes, mas essa informação veio completa.
Certos elementos de reputação muito negativa haviam sido vistos na zona.
Matadores. Gente a serviço dos donos de terra. Bom, a questão não era apenas
que havia ali elementos suspeitos; o rumor já era completo. A informação era:
querem produzir um derramamento de sangue para levar Lugo a um juízo político e
tirá-lo do poder”.
Outras
fontes no governo Lugo confirmam que, meses antes, houvera uma situação
semelhante, durante a desocupação de um terreno em Ñacunday, ocupado por cerca
de 8 mil famílias sem-terra. Na ocasião, os camponeses foram transferidos para
um terreno vizinho, sob intensa crítica da imprensa nacional. “Quando ocorreu o
caso Ñacunday nós denunciamos que havia armas de guerra, que havia grupos que
se vinham infiltrando e que iam usar qualquer ação da policía para responder.
Gerou-se uma situação muito delicada que eu lamento que não sido levada
suficientemente a sério, porque faz tempo que gente que quer desestabilizar o
governo está buscando provocar este tipo de fato”, afirmou à imprensa Miguel
Lopez Perito, chefe do Gabinete de Lugo, no dia seguinte ao conflito de
Curuguaty (clique aqui). O líder camponês José Rodriguez,presidente da Liga
Nacional de Carperos, confirma: “O Fiscal Geral do Estado, Javier Díaz Verón, e
o próprio Presidente da República, Fernando Lugo, foram advertidos, mas não
tomaram as precauções correspondentes”.
No
Cado de Curuguaty, a reintegração foi realizada, embora não houvesse mandato
legal para isso. A ordem, emitida pela fiscal Ninfa Aguilar, extrapolou a ordem
judicial emitida pelo juiz José Benites, que era de “allanamiento”, um espécie
de “averiguação” para verificar se havia pessoas armadas ou invasores. Ninfa
Aguilar, que esteve durante anos à frente da Fiscalia regional, fez repetidos
pedidos de reintegração de posse ao longo dos anos. Sua ligação com Don Blas é
conhecida, segundo um relatório da organização Plataforma de Estudio e
Investigación de Conflictos Campesinos. Ela teria atuado como advogada dele em
processos de requisição de posse da terra.
O começo
No
dia 14 de junho de 2012 já estavam na região 324 oficiais da Polícia Nacional
de 4 chefaturas de polícia locais, incluindo do Grupo Especial Operativo(GEO),
da força de elite da polícia (FOPE), a polícia montada, antimotins e um
helicóptero Robinson, para cumprir a ordem de Ninfa Aguilar.
Às sete
horas da manhã todo o contingente já estava a postos. Erven Lovera sobrevoou a
área com o helicóptero para fazer o primeiro reconhecimento e averiguou que os
camponeses tinham armas. Então a força entrou dividida em duas, cada uma por um
lado do terreno ocupado.
Roberto
– o nome é fictício – outro camponês procurado pela polícia, estava no
assentamento para dar apoio a seu filho de 18 anos, que almejava um lote de
terra. “Cedinho pela manhã o helicóptero já estava sobrevoando a estância.
Havia um grupo com escopetas e um grupo com facões. Nós estávamos com facões.
Quisemos falar com eles, mas não havia conversa possível”.
Do
alto, o helicóptero gritava pelo megafone que saíssem do local e acionava uma
sirene altíssima. “Me surpreendeu a quantidade de policiais porque havia muitas
crianças e nós pensávamos que íamos só conversar”, diz Ruben Villalba, cuja
esposa e o filho, então com 3 meses, estavam no local na hora em que começou a
confusão.
Roberto
se lembra do momento exato em que avistou a primeira fila de policiais.
“Chegaram, abriram o portão e entraram. Eu não ouvi muito bem porque estava no
meio, mas vi quando entraram. Teve um senhor que foi conversar com eles,
pedindo para ver o título da terra. Nisso, escutei os disparos vindo o outro
lado”.
O motivo
da insistência dos sem-terra para ver o título da propriedade do terreno era
simples: o tal título não existe. Desde 2004, o terreno é objeto de um tremendo
imbróglio jurídico que tem de um lado a empresa Campos Morumbi SA, do falecido
Blas N Riquelme, e do outro o Indert, o Instituto de Terras paraguaio.
O
terreno foi doado em 1967 para a Armada do Paraguai pela empresa Industrial
Paraguaya. Em 2004, a terra foi transferida oficialmente ao Indert. “É quando o
poder executivo, através de um decreto, declara o terreno de interesse social,
e se destina para reforma agrária”, explica Ignácio Vera, ex-diretor regional
do Indert. Pouco depois a empresa Campos Morumbi entrou com um pedido de
usucapião – e o pedido foi acatado na justiça local. Ao mesmo tempo, Blas N
Riquelme entrou com outro pedido na justiça, para transformar o terreno –
totalmente desmatado e com plantações de soja – em uma reserva natural. Este
pedido também foi acatado, e o terreno foi registrado como “Reserva Natural
Campos Morumbi”.
“Houve
um cumplicidade de vários funcionários do Indert e da Escrivania Maior do
governo para adquirir a terra de maneira irregular e depois encobrir a
manobra”, diz Ignácio Vera. Desde então, o Indert recorre da decisão, tendo
feito reiterados pedidos para que não se expulsasse os sem-terra, pois o
terreno já deveria ter sido destinado à reforma agrária – como mostra este
documento dirigido pelo assessor jurídico à Fiscalia em agosto de 2011 (veja
aqui).
Os
pedidos do Indert seguiam sendo ignorados pela justiça local, e a pretensa
propriedade de Riquelme era evocada em todas as ordens de desocupação, como
mostram documentos revisados pela Pública (veja aqui, aqui e aqui).
No
dia 4 de janeiro de 2012, a comissão permanente da Câmara dos Deputados, em
sessão ordinária, emitiu uma decisão instando o Ministro do Interior do governo
Lugo, Carlos Filizzola, a cumprir a demanda da mesma fiscal Ninfa Aguilar, que
pedia a descoupação do terreno de 2 mil hectares que, segundo ela, pertencia à
empresa Campos Morumbi.
A decisão
– clique aqui para ler – foi resultado de um pedido feito pelo deputado
colorado Oscar Tuma para que o Congresso desse uma forcinha à fiscal. O motivo
alegado para uma intervenção de alto nível – engatilhada pelo próprio Congresso
Nacional – seria a preservação do meio ambiente. “Quero ressaltar que essa
massa de bosque é valiosa para a República do Paraguai, porque na zona se geram
60% dos manaciais do Rio Acaray”, escreveu Tuma, no requerimento (clique aqui e
aqui para ler).
Seis
meses depois, o mesmo Tuma foi o principal advogado da acusação a Lugo
realizada pelo Congresso. “Um juízo político geralmente se faz quando há
mortes”, declarou ele na televisão na véspera do impeachment. “Nós podemos
aguentar muita coisa, viemos aguentando muitas coisas que estão entre as causas
da acusação, que se deram anos atrás. Mas quando existem mortes…”.
O Estado, cativo
Na
região de Canindeyú, o então diretor do Indert Ignácio Vera era próximo dos
movimentos camponeses – próximo demais, na visão da polícia e de fazendeiros da
região. Tanto que, no dia 15 de junho, em que ocorreu o confronto, teve que
sair fugido do local, sob ameaça de morte. O relato oficial que Vera enviou ao
seu superior no Indert – veja aqui o documento – revela a fragilidade do Estado
paraguaio, que pouca autoridade mantém na região fronteiriça.
“Fui
fazer a verificação no lugar mencionado, chegando aproximadamente às 11 horas.
Em um controle policial sobre a estrada de asfalto perguntei a direção exata
para chegar ao lugar dos fatos juntamente com um veículo do Ministério da
Saúde”, escreve Ignacio Vera. “Ao sair em um caminho transversal tomamos um
atalho que não era correto e neste ínterim recebi uma chamada pelo telefone
para que saísse da zona porque estavam os policiais estavam planejado me matar,
especificamente os da GEO (operações especiais). Fomos ao acampamento deles e
comentamos com uma policial mulher a gravidade do caso, que se tinha que evitar
o enfrentamento entre paraguaios; ao sair da propriedade, onde havia várias
pessoas e policiais, apontaram-me as escopetas e disseram-me que saísse dali
porque era por minha culpa que estava acontecendo este enfrentamento”.
Vera
relembra que saiu correndo do local, com o consentimento de seus superiores no
governo federal. Teve que deixar a caminhonete do Indert na sua casa e contar
com a ajuda do seu irmão, que o levou, junto com a família, ao município de
Caaguazú. “Estava muito preocupado com a situação, porque já compreendi que era
um problema de perseguição política, e que podia haver violência em qualquer
parte”, disse em entrevista à Pública. Vera ficou alguns dias escondido até
poder voltar à região. Um mês depois, já sob o novo governo, do liberal
Federico Franco, foi afastado da direção do Indert.
Miguel
Lovera, diretor da Senave, também visitou a região naquele mesmo dia – e também
teve que ir embora rapidamente. “Eu me comuniquei com os outros ministros, e
consultei se devia ir pra Curuguaty, e como não tive respostas, fui para lá e
me reuni com dirigentes camponeses. Eles estavam com muito medo, acreditavam
que a matança ia continuar. Temiam muito pela minha integridade física. Pediam
para que eu não saísse às ruas, ‘não saímos e esperamos o que vai acontecer’,
me diziam”.
Pouco
depois, a Ministra de Saúde Esperanza Martines, considerada a ministra forte do
governo Lugo, chegou a Curuguaty para prestar assistência às vítimas. O cenário
que encontrou, segundo contou em entrevista à Pública, era desolador. “Quando
cheguei, a polícia estava rodeando o hospital porque havia uma ameaça de que os
camponeses iam invadir para levar os corpos dos seus parentes. Os jornalistas
andavam livremente nos corredores”, lembra ela. “Os cadáveres dos camponeses
estavam todos jogados, ao lado da entrada, e os dos policiais estavam em um
quarto nos fundos, resguardados. Depois me inteirei que a polícia somente
transportou, nos aviões que chegaram de tardezinha, os policiais feridos e
mortos até Assunção, onde se faria a autópsia”.
Esperanza
lembra do pânico de um funcionário do seu ministério. “Um profissional de saúde
me ligou, ‘vai escurecer, ficaram para trás todos os cadáveres dos camponeses e
eu tenho medo que sejam levados embora’”, lembra. “Aí eu liguei para o Fiscal
Geral do Estado e lhe disse que me parecia muito suspeito que somente se
levassem os cadáveres dos policiais e não dos camponeses. Como se vai
investigar? Disse que eu ia fazer uma denúncia internacional”. Ao final, os
cadáveres dos camponeses foram levdos nas ambulâncias do Ministério para
poderem passar pela autópsia no dia seguinte. Porém, até meados de novembro, os
resultados não eram conhecidos.
Naquele
mesmo dia, Esperanza teve que voltar correndo a Assunção – “já se estava
falando do juízo político no Congresso”, diz – mas tentou, ainda, ajudar alguns
moradores com quem teve uma rápida reunião. “Falamos com camponeses, e eles
diziam que muita gente estava sendo presa simplesmente por perguntar sobre os
feridos”. Não conseguiu fazer nada nos dias seguintes, engajada nas negociações
políticas para evitar a destituição de Lugo. Esperanza foi, junto com o chefe
de gabinete Lopes Perito, a única ministra a ser mencionada nominalmente no
libelo acusatório apresentado pelo Congresso para destituir Fernando Lugo. Os
deputados afirmaram que os ministros agiram de forma “absolutamente equivocada”
em Curuguaty, ao “tratar de maneira igual policiais covardemente assassinados e
aqueles que foram protagonistas destes crimes” – ou seja, os camponeses.
Ainda
em Curuguaty, na tarde do dia 15, o jovem Miguel Ángel Correa, de 20 anos,
técnico do ministério de Agricultura, foi preso ao chegar ao hospital
municipal, onde buscava saber sobre o parente de um amigo seu, ferido durante o
conflito. Segundo denúncia da Anistia Internacional, Miguel Ángel não foi só
preso, mas torturado pela polícia: na Cadeia Coronel Oviedo, apanhou e foi
ameaçado de morte.
Embora
não tenha colocado os pés no local onde ocorreu o crime, seu nome consta no
duvidoso relato policial como tendo sido detido por ter relação com a ocupação
(clique aqui, aqui e aquipara ver). Por conta disso, os primeiros pedidos do
seu advogado para que fosse solto – por não ter absolutamente nada a ver com o
fato – foram negados pelo juiz (clique aqui para baixar o recurso da defesa).
Ele só foi solto um mês depois.
Outros
camponeses presos pela polícia tiveram sorte pior, como Felipe Neri Urbina,
detido quando tentou acudir um sem-terra que havia sido baleado no tórax e que
tentava escapar pela estrada Rota 10. Ou Lúcia Aguero Romero, empregada
doméstica que passava alguns dias com seu irmão em um casebre de madeira no
terreno ocupado, cuidando do trabalho doméstico. Os dois permanecem presos. “Às
8 horas aproximadamente, vi que vinham muitos policiais ao longe e saí de casa
para curiosar; encontrei um senhor com seu filhinho cujo nome não lembro que
perguntou se eu podia cuidar da criança para ele ir escutar o que os policiais
diziam, deixando comigo o menino”, contou ela em depoimento que consta da
investigação da Fiscalía. “Logo de meia hora mais ou menos escutei vários
disparos, jogando o menino no matagal (…) quando quis me aproximar me feriram
na coxa esquerda e quando me atirei em cima do menino para protegê-lo a polícia
chegou e me agarrou” (clique aqui, aqui e aqui para ler) .
Lúcia,
junto com outros camponeses, está em greve de fome há 60 dias, em protesto
contra a prisão preventiva sem provas nem julgamento, que se prolonga por 5
meses. O estado de saúde dos grevistas é débil – alguns perderam mais de 20
quilos – e, na última semana, eles foram transferidos para um hospital para
receber tratamento forçado. A situação dos presos gerou protestos na capital
Assunção em que dezenas de manifestantes acamparam diante da Fiscalía Geral.
Mas, às quatro da madrugada do dia 21 de novembro, os manifestantes foram
acordados com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, e expulsos do
local. Em nota, a polícia afirmou que a ação se realizou porque “uma via
pública não pode ser bloqueada”.
Furos da investigação e uma cápsula de bala 5,56
Uma
cápsula de projétil dourada, feita de latão militar, com 9,50 mm de diâmetro,
pode ser a evidência definitiva de que a investigação do fiscal Jalil Rachid
está desconsiderando muitos elementos cruciais.
No
dia 2 de outubro, em uma conferência de imprensa Rachid divulgou a conclusão da
Fiscalia, de que os agentes policiais caíram em uma emboscada “previamente
preparada e planejada” por sem terra armados com rifles, escopetas, foices e
machados. Rachid afirmou também que Rubén Villalba é o principal responsável
pela tragédia.
Em
pouco mais de dois meses de investigação, porém, a Pública teve acesso à
cápsula de uma bala 5,56, utilizada em fuzis M16 e carabinas M4 – armas usadas
tanto por grupos de elite das forças de segurança do Paraguai como por
traficantes que agem na fronteira com o Brasil, onde se trasporta de maconha e
eletrônicos até agrotóxicos.
A
cápsula foi, segundo testemunhas, encontrada no terreno de Marina Cué pouco
depois do conflito. Trata-se de uma cápsula de bala fabricada em 2007 em Salt
Lake City, em um complexo militar pertencente ao governo americano no estado de
Utah e administrado pela empresa militar privada ATK. A ATK exporta armas e
munições para o Paraguai através da empresa SAKE SACI, segundo registros do
governo americano compilados pela consultoria Import Genius. A ATK enviou pelo
menos 18 carregamentos até 2012, segundo a Import Genius – que, no entanto, não
precisou que tipo de materiais foram exportados. Contatada pela Pública, a ATK
se negou a dizer se exporta apenas para forças militares no Paraguai ou também
para grupos privados. “A ATK não revela essas informações sobre cada um de seus
programas”, afirmou a assessoria de imprensa.
A
cápsula de bala 5,56, que permanece em um local seguro no Paraguai, pode ser o
único indício de que se utilizaram, no dia do conflito, armas militares – sejam
elas pelas forças especiais da polícia ou por francoatiradores contratados.
Dezenas de outras cápsulas semelhantes, recolhidas no local, simplesmente
desapareceram.
No
informe da polícia, ao qual à Pública teve acesso – veja aqui – aparecem apenas
dois invólucros de balas 5,56, que não foram periciados porque não foram encontradas
as armas correspondentes. No entanto, diante de uma multidão de fotógrafos, o
político Julio Colman, detentor de um poderoso vozeirão que todos os dias
preenche as ruas de Curuguaty no seu programa de rádio matinal, coletou, e
entregou à Fiscalia, diversas cápsulas semelhantes no dia do massacre.
Mesmo
assim, o fiscal Rachid continua negando a existência de cápsulas de balas de
fuzis automáticos no local, afirmando que “neste caso o número de falecidos
teria sido maior”, ao jornal ABC Color. Segundo Rachid, nenhuma arma militar
foi utilizada naquela manhã. “Tomei declarações testemunhais dos agentes que
intervieram e elas estão anexadas ao relatório fiscal. Todos coincidem em dizer
que não utilizaram armas com projéteis reais, nem gás pimenta”, afirmou.
Desde
que apresentou suas conclusões em outubro, o fiscal tem sido cada vez mais
criticado. Além dos protestos pedindo a libertação dos camponeses, a verdade é
que a sua hipótese– de que 70 camponeses teriam emboscado 324 policiais com
escopetas de caça – não convenceu ninguém.
O vídeo que desmente o fiscal
A
maior pedra no sapato do fiscal é um informe detalhado, publicado em outubro
pela organização PEICC (Plataforma de Estudio e Investigación de Conflictos
Campesinos) fundada pouco depois da destituição de Lugo pelo político liberal
Domingos Laino – um homem calmo, mas de palavras enfáticas, quase dramáticas –
com o objetivo explícito de investigar a investigação oficial.
O
PEICC de Domingos Laino, que chegou a se exilar no Brasil durante a ditadura de
Stroessner, também assumiu a defesa dos camponeses presos, e está pedindo a
completa anulação da investigação. “Querem desvirtuar a investigação por
motivos políticos”, vocifera o fiscal Rachid. Mas as falhas levantadas pelo
relatório do do PEICC são eloquentes.
Primeiro,
o informe – leia aqui a íntegra – questiona o fato de só terem sido encontradas
no local cinco escopetas de caça e um revólver, armas que dificilmente
conseguiriam matar tanta gente em tão pouco tempo. Analisando um vídeo gravado
pela polícia, o PEICC defende que se ouve uma rajada de fuzil automático no
momento do tiroteio. Para o PEICC, isso demonstra que possivelmente havia
francoatiradores profissionais no local. A evidência é descartada pelo fiscal
Rachid.
O
mesmo vídeo mostra a presença de mulheres e crianças no local do confronto, o
que, para o PEICC, desmentiria a versão de uma emboscada. Já na investigação
apresentada pela Fiscalia, todos os mais de trinta depoimentos de policiais
recolhidos batem na mesma tecla: que não havia, ali, nenhuma mulher ou criança.
É mentira. Também dizem que os camponeses estavam fortemente armados. Mais uma
vez, o vídeo publicado pelo PEICC desmente essa versão: apenas alguns
camponeses que aparecem portam escopetas de caça.
A
coisa fica pior. Das cinco escopetas periciadas pela polícia, apenas uma se
mostrou capaz de atirar durante os testes de balística. E uma das armas
incluídas no informe pela polícia foi, na verdade, roubada no dia 22 de junho,
uma semana depois do massacre, da casa do general Roosevelt Cesar Benitez
Molinas, e abandonada atrás de uma igreja em Curuguaty (veja o relatoaqui e
aqui).
Nos
dias que se seguiram à matança, diz o relatório, o médico forense Pablo Lemir
chegou a afirmar que os policiais foram mortos com “disparos de cima para
baixo” e que “a maioria dos orifícios de entrada dos corpos dos policiais
coincidem com as áreas que estavam desprotegidas pelos coletes antibalas (…)
com o que se presume que quem realizou os disparos conhecem os lugares que os
coletes não cobriam”. Lemir declarou à imprensa que “as características dos
disparos – seria apressado dizer agora – mas configuram básicamente uma
emboscada”.
A
hipótese de que houvesse francoatiradores na área foi, depois, descartada pela
Fiscalía, e os resultados dos informes do forense não foram apresentados ao
público quando Rachid anunciou suas conclusões.
Também
não consta na investigação da Fiscalía o fato de que o helicóptero usado pela
polícia, que disparava uma sirene ensurdecedora, atirava durante o confronto.
Todos os policiais entrevistados afirmam que o helicópeto não estava
sobrevoando a área durante o tiroteiro. Masum vídeo vazado pelo Youtube mostra,
de fato, o helicóptero atirando (clique aqui). O camponêsRoberto (nome
fictício), entrevistado pela Pública, lembra bem deste detalhe. “Os feridos
estavam correndo e eles disparavam do helicóptero, que estava muito baixo”.
O
informe do PEICC mosta ainda policiais manipulando os corpos dos camponeses,
atirando sobre eles invólucros de balas e escopetas, para posarem para as fotos
que ilustariam os jornais nos dias seguintes. As fotos da montagem da cena,
segundo Laino, foram doados ao PEICC por fotógrafos “que não concordam com o
que aconteceu” – e não saíram na imprensa paraguaia.
Coincidentemente,
é uma foto desfocada, sem autoria definida, que foi usada para caracterizar
Ruben Villalba como o homem que atirou em Erven Lovera, dando início à chamada
“emboscada” à polícia.
Segundo
os depoimentos dos policiais – muitos dizem não poder identificar os camponeses
porque eles estariam com o rosto coberto por panos – o homem que atirou em
Lovera portava um revólver calibre 38, niquelado, que teria sido sacado após
outro homem (ou o mesmo, dependendo do depoimento) tentar atingir Lovera com
uma foice. A arma não aparece na foto, mas a foice, sim. Rubem nega que o homem
de vermelho seja ele.
Em
meados de julho, um policial de nome Anoni Paredes prestou um segundo
depoimento à polícia, no qual afirma que “conforme as diversas fotografias que
pude observar nos meios de comunicação e tendo em conta conheci Rubén Villalba,
posso dizer que ele não se encontra entre os invasores que morreram no lugar e
que esse que veste a camiseta vermelha tem a mesma compleição física”.
Além
disso, a investigação guarda contra Ruben, como peça-chave para sua condenação,
um depoimento “confidencial”, anônimo, datado de 26 de junho de 2012, no qual o
depoente afirma que se unira ao grupo vinte dias antes do famigerado 15 de
junho.
“O senhor Villalba era o
encarregado de dirigir as reuniões; em todas estas reuniões que se realizava
permanentemente no sítio dava instruções de como resistir às Forças de Ordem,
dizia que ‘não é que os polícias sejam culpados da pobreza dos camponeses, mas
são os elementos utilizados pelo governo de turno’. Nas suas dissertações
falava muito do guerrilheiro Che Guevara e do comunista russo Lenin, mas no
entanto se autodeclarava analfabeto. Ele tinha consigo sempre uma boa pistola e
às vezes efetuava disparos, revelando muito boa pontaria, além de mostrar
certas habilidades táticas no uso da arma e na prática de combate”. O
depoimento – clique aqui e aqui para ler – diz, ainda, que Ruben comprou balas
“por um valor aproximado de 2 milhões de guaranis (mil reais) e que no lugar
sempre estava uma pessoa que se dizia armeiro, encarregado da manutenção das as
armas”. O depoente anônimo afirma que, assustado, resolveu sair dali antes da
reintegração de posse.
Na sua cela superlotada em Tacumbú, Villaba tem pouca
esperança de escapar ao papel de grande algoz do massacre de Curuguaty.
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